Muito
já se tem escrito sobre a importância da música popular na obra de Fernando
Lopes Graça. Não cabendo nesta rúbrica apresentar um estudo aprofundado das
influências da música de tradição oral na obra do compositor que outros
investigadores já realizaram, trazemos à memória um texto no qual este exprime
a sua visão sobre as dinâmicas da cultura, os intercâmbios entre formas e
convenções musicais, uma visão temperada de valores humanistas. Originalmente
publicado no nº 46 da revista Vértice em maio de 1947, «Sobre o conceito de popular na música» resultou de uma palestra
proferida por Fernando Lopes Graça na Escola do Grupo de Amadores de Música Eborense
por ocasião da celebração do aniversário da antiga Agremiação popular, fundada
em 1887. Para além da simpatia e do reconhecimento fraterno perante um
auditório de amadores a que chama «amigos», «Sobre o conceito de popular na música» afirma-se sobretudo como um belo
depoimento acerca das concepções cívicas e políticas do artista e do grande
divulgador da música que Lopes Graça foi, permitindo-nos evocar um período
crítico da história política portuguesa do século XX. O compositor iria a Évora
não para definir ou explicar a música e a cultura populares mas para denunciar
a instrumentalização da cultura pelo regime autoritário do Estado Novo.
A
conjuntura em que o convite para a viagem a Évora surgira não tinha sido a mais
propícia para Lopes Graça. Poucos meses antes, no verão de 1946, tinha publicado,
pela Seara Nova, uma recolha de temas musicais intitulada «Marchas, Danças e
Canções», partindo de uma seleção de poemas de autores ligados ao movimento
literário neo-realista como Armindo Rodrigues, Arquimedes da Silva Santos, Carlos
de Oliveira, Edmundo Bettencourt, João José Cochofel, Joaquim Namorado, José
Ferreira Monte, José Gomes Ferreira e Mário Dionísio. A recolha fora pouco
depois confiscada pela polícia política apesar do protesto endereçado pela
Gerência da Seara Nova aos serviços de censura, caído em saco roto. Alguns
temas como «Mãe Pobre» ou «Jornada» haviam sido citados e particularmente
criticados pelo seu antipatriotismo. Pedia-se assim ao subdirector da Polícia
Internacional de Defesa do Estado que «se dign[ass]e promover a sua apreensão»,
ordem logo reforçada, em janeiro de 1947, com a proibição expressa de circularem
os 978 exemplares da publicação que continha as composições: tratava-se de
poemas sediciosos, contrários à ordem estabelecida, acompanhados por uma música
«celestial», nos termos do censor, impróprios para a segurança do Estado.
Embora
Portugal não tivesse participado na 2ª Guerra Mundial, o fim do conflito global
- com a vitória dos Aliados -, fora festejado pela opinião pública com uma
esperança renovada de mudança política e de recuperação das liberdades civis.
Logo em 1945, reorganizara-se num amplo movimento – Movimento de Unidade
Democrática (MUD) – uma frente de forças e personalidades diversas alinhadas
contra o fascismo, com importantes desenvolvimentos nos planos culturais, literários,
artísticos e musicais.
Se
o recrudescimento do sentimento antifascista e contra a ditadura tinha
resultado, no plano da cultura, num afastamento assumido de muitos intelectuais
e criadores portugueses relativamente à estética oficial do regime edificada
pelo Secretariado da Propaganda Nacional (rebaptizado em 1944 de Secretariado
Nacional da Informação), também pelo seu lado, e uma vez instaurada a Guerra
Fria, o regime de Salazar procurou reafirmar-se reapertando o controlo sobre a
circulação de obras e ideias consideradas rebeldes, contrárias ao «bem da
Nação».
Essa
contra-reação ficaria bem expressa na apreensão de obras literárias ou visuais,
nas detenções e interrogatórios dirigidos aos seus autores, alegadamente porque
essas obras evidenciavam (nos seus temas como nas suas formas) tendências bolchevizadoras, incitação à revolta, as
mesmas tendências que a censura iria detectar nas composições incluídas nas
«Marchas, Danças e Canções»…
A
conferência «Sobre o conceito de popular
na música» foi lida assim numa circunstância menos feliz da vida do
compositor, circunstância que melhor aclara a coragem obstinada que sempre
entendeu assumir contra um regime que abominava. Nas entrelinhas desta
conferência pública de Évora, fica também esclarecido o antagonismo que irremediavelmente
oporia Lopes Graça e o seu entendimento da cultura como campo dinâmico, a António
Ferro, diretor do Secretariado de Propaganda Nacional, arauto e promotor da
cultura como repositório de formas ao serviço da propaganda do regime. Como
lembraria mais tarde o musicólogo João de Freitas Branco[i]: entre os dois homens erguia-se
«uma profunda e mútua antipatia pessoal», a par de um flagrante contraste
ideológico publicamente reafirmado em Évora pelo compositor. Esse contraste
teria consequências repetidamente demonstradas na má vontade das instituições
culturais do regime perante a figura e a obra de Lopes Graça, como sabemos: «Eu
não sei - ou por outra, sei muito bem -», diz-nos o compositor com a sua
agudeza irónica, «o que se pretende ao falar-se em organizar, em dirigir a
cultura. Tanto a cultura popular como a arte popular, logo que são organizadas,
logo que são dirigidas, deixam de ser verdadeiramente populares e passam a ser
coisas artificiais que perderam toda a sua razão de ser (...), deixam de ser um
fim em si mesmas para se tornarem um meio ao serviço de interesses de outra
ordem».
De
facto, ao conceito de dirigismo cultural que nesse trecho mais uma vez
criticava, Lopes Graça opunha uma conceção de cultura como suporte material e
mental dinâmico da emancipação humana, numa linha adversa à do
diretor da Propaganda e dos seus apoiantes para quem a cultura popular se devia
apresentar com a imagem idílica, estática e repressivamente conservada, de povo
dócil, apolítico, sem vontade própria, uma vez mais para o «bem da Nação». Tingida
de certo idealismo romântico, a posição de Lopes Graça tendia inversamente a
exaltar no popular características vitais de criatividade e autonomia em
contraposição frontal ao “discurso” estético Estado-Novista.
Lopes
Graça tinha consciência clara do ardil da propaganda que tendia a projetar a
imagem de um povo menor, «incapaz de compreender (...) as grandes obras do
pensamento e da arte», fatalmente colado ao «fado, ao folclore, à revista
ligeira, ao romance de cordel»… É pois essa cristalização redutora e imóvel do
popular – na música como noutras manifestações culturais -, e os termos “adulterados"
em que esta se efetua, que Lopes Graça contrapõe e repetidamente denuncia nesta
conferência. O choque entre o popular em Lopes Graça e o popular concebido pelo
ideólogo do SPN/SNI, António Ferro, não sem contradições de parte a parte, só
podia ser total, um choque de titãs à escala portuguesa...
Lopes
Graça insurgiu-se sempre aberta e publicamente contra a linha da cultura
oficial defendida por António Ferro e apoiada pelo ditador, Oliveira Salazar.
Em Évora, mais uma vez o fará, imputando ainda ao regime autoritário todo um
comércio de entretenimento que havia de se socorrer do património musical oral
português para produzir um cançonetismo ligeiro de curta duração, formatado
para a emissão radiofónica e para o consumo acrítico das massas. As suas
palavras de despedida perante o público eborense não podiam ser outras senão as
do encorajamento e da perseverança, «por mais adversas que sejam as
circunstâncias presentes». E estas foram-no, uma vez mais, para o nosso
atrevido compositor, como vimos. Lopes Graça seria novamente intimado a esclarecer-se
e a retratar-se, de acordo com o veredicto do próprio Presidente do Conselho
apenso ao auto de confisco das «Marchas…»: seriam «chamados à responsabilidade
os seus autores (…) e bem assim o autor da música que é simultaneamente o do
prefácio do livro em questão»[ii].
[1]
Ver: «A música em Portugal nos anos 40» in, «Os Anos 40 na arte portuguesa – A
cultura nos anos 40 - Colóquios», Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982.
Pp. 55-75.
[1] Ver: «Apreensão da publicação "Marchas, danças e
canções"»; pasta com a cota PT/TT/SNI-DSC/19/13, em http://digitarq.dgarq.gov.pt/
Ana Filipa Candeias (APESFLG)
[i]
Ver: «A música em Portugal nos anos 40» in, «Os Anos 40 na arte portuguesa – A
cultura nos anos 40 - Colóquios», Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982.
Pp. 55-75.